sexta-feira, 9 de março de 2007

Aqueles de bom coração, leiam

Desde que me entendo por gente (não faz muito tempo), estou habituado aos vendedores informais que quebram a formalidade do ônibus. Eles sobem nos coletivos, e alguns com desenvoltura, a maioria nem tanta, dão bom dia, tarde e noite para os passageiros, sem resposta nossa, e nos oferecem suas deliciosas balinhas, ou os novos chicletes, ou ainda o legítimo cheiro do Pará. Passam por nós passageiros e recolhem os produtos que indiscretamente colocaram sobre nossas coxas, ou efetuam a venda. Quase sempre invocam o nome de Deus, não sei se em vão, agradecendo às pessoas de bom coração que colaboraram. Nessas horas me sinto um cara perverso, frio e indiferente. Queria ter bom coração também. Constrangido, não raro comprei só para estar nesse seleto grupo.

O que tem me chamado a atenção ultimamente, é claro que não é a presença de trabalhadores informais nos coletivos, mas a enorme quantidade deles. E não são só vendedores: já vi músicos caribenhos, sanfoneiros cegos, palhaços que cobram o retorno do bom dia-tarde-noite, ou simples pedintes, com os mais diferentes discursos. Aí me pergunto: será que a situação está tão ruim assim ou vender/pedir ou pedir pra comprar por misericórdia é um bom negócio? Moro na Augusto Montenegro, portanto calculem quanto tempo passo dentro de um ônibus, e a minha vasta experiência por consequência. Em uma hora de viagem, em média uma pessoa a cada cinco minutos sobe no ônibus para esse fim.

Constatei que quase todos usam as mesmas palavras-chave, os mesmos apelos, ou o mesmo texto na íntegra. Em um esforço imaginativo, visualizei uma escola de pedintes dos coletivos, onde pessoas mais tarimbadas ensinam às novas gerações a arte de pedir no ônibus. Ou vender, que chega a ser a mesma coisa. Lá eles teriam aulas de retórica, postura, marketing, economia (para calcular as promoções), psicologia (para saber as impressões que causam nos passageiros) e é claro, teologia. Bem, isso foi uma grande viagem, mas em uma hora de ônibus dá pra pensar em muita coisa.

É lamentável ver que a maioria nem dinheiro para comprar as balas tem. Pedem dinheiro para "juntar capital". Outros mostram a receita de um remédio que garantem ser caríssimo, e precisam comprar para a mãe que padece de câncer no Barros Barreto. São muitos, que a gente se pergunta, como o Chico Buarque, "de onde essa gente vêm". É preciso pôr mais ônibus em circulação para abrigar toda essa demanda. E também para eu não ter que esperar horas pelo UFPA-Icoaraci. Em uma perspectiva menos realista, poderiam fazer um programa de emprego para eles. Quem sabe regulamentar a profissão e as suas diferentes categorias. Não sei, mas aposto que se a lucratividade é alta nesse ramo, por outro lado o mercado de trabalho é bastante selvagem. Ainda não vi briga para abordar um ônibus, mas não duvido que existam, e muitas. Claro que eles não expõem suas divisões em público.

Se melhorarem as condições, até cogito a possibilidade de entrar no ramo. Em um dia, faturaria mais do que em um mês de estágio, o que não chega a ser grande feito. O que eu faria para inflar tanto minhas vendas? Simples: apelaria às pessoas de mau coração também.

Alan Araguaia

Um comentário:

Anônimo disse...

Fale, Alan. Aqui na Cidade Perigosa também tem um bocado desses. São tantos, que eles precisam ser bem criativos pra convencer alguém a ter bom coração. Tem uns que dão amostras grátis, outros anunciam que vendem fiado, outros falam todas as propriedades nutritivas, benefícios físicos, espirituais e sociais e certificações de qualidade ISO sei lá o quê de uma simples menta, descrevendo com todos os detalhes como são feitos os testes. Tem umas que entram com bebê no colo, aí não tem graça nenhuma. Aliás, todos esses casos são muito tristes. No processo de embrutecimento por qual passamos nessa barbárie toda, vemos essas coisas sem sentir nada. E, no cúmulo disso tudo, passamos até a achar engraçado...
Um abraço!