domingo, 12 de agosto de 2007

A intérprete

Enquanto eu fazia uma varredura pelo fluxo mental, em busca de matéria-prima para a realização literária - o que era um grande aborrecimento - você se deitava no sofá com as pernas descansadas no raque, lendo sua revista semanal, ao mesmo tempo em que tentava puxar uma conversa comigo. Tudo você fazia com muita naturalidade e parecia que nada era capaz de expulsar a serenidade de seu rosto. Eu não podia conversar com você enquanto tentava me concentrar em minhas idéias, e isso me chateava ainda mais, pois ouvir a sua voz era mais atraente do que continuar com essas tentativas frustradas e por vezes patéticas. Uma vez mais renunciei a essa minha vaidade intelectual para falar das suas coisas de jornalista atenta. Meu imenso egoísmo me impedia de me interessar por tais assuntos, pois escapavam totalmente ao meu controle e círculo íntimo, e exatamente por serem muito grandes eu as considerava minúsculas.


Mas esses assuntos sociais, econômicos, políticos, e os domésticos, colocados pela sua voz adquirem um significado radicalmente novo. Você é a minha ligação com esse mundo que insisto em rejeitar, pois te amo e esse amor abarca as coisas que você ama. Quando te conheci, você estava rodeada daqueles sujeitos que eu repugno, e aos quais ironicamente sempre estou me igualando, tornando-me um deles, ou ainda mais mesquinho, hipócrita e vazio. Todos nós, homens da mesa, queríamos chamar a sua atenção, todos nós nos esforçávamos para ofuscar a inteligência alheia. Nessa guerrinha pelo direito de acasalamento eu adotava a estratégia do silêncio contínuo alternado por frases lapidarmente elaboradas. É óbvio que estava em grande desvantagem, por esse excesso de polidez e covardia dissimulada. Só que você era generosa com todos, distribuía sorrisos amáveis e respondia com grande interesse aos mais disparatados comentários. Aquele cara ao seu lado, o mais alcoólatra dentre nós, já tinha os olhos turvos e falava mais alta e ousadamente que os demais, e você gentilmente informou-lhe que estava exagerando. Reprovei com o olhar a forma condescente com que tratavas o néscio. Você já exagerava no espírito de caridade!

- Não sei porque ainda insisto em andar com vocês, bando de vermes. - falei em voz alta e rapidamente, como se fosse uma contração involuntária. E de fato era. Minha intenção era somente pensar. Entrei em pânico ao ver os olhares deles todos coléricos apontando estáticos em minha direção, e o seu ao ouvir tamanho absurdo. Eu quis sumir.

- Se andas com a gente, só é possível que sejas mais um verme, como nós. - finalmente disse aquele dentre eles que eu respeitava, o que aumentou a minha vergonha. Ele estava sério e visivelmente decepcionado com a minha arrogância. Eu me esforçava em encará-lo, realizando um esforço emocional olímpico. Eu pedi perdão e quis me levantar da mesa. Você deteve o meu braço, fitou os meus olhos, e disse, quase rindo:

- Ah, que bobagem! Senta aí! É visível que vocês se adoram, e por isso não se desgrudam!

Eu me acomodei de novo, enchi meu copo de vodca, e bebi até a metade. Só assim pude relaxar. Até fiz brincadeira sobre aquilo. Não me dei conta da hostilidade que ainda pairava sobre mim.

A mesa foi se esvaziando com o avançar da madrugada, te perguntei sobre o ônibus que ias pegar. Vibrei por dentro quando você disse que era tal, o que eu também pegava. Não precisaria mentir para te seguir. Passado o efeito do álcool, supus que me desprezavas pelo comentário de antes. Tomado de medo, procurei a tua boca e encontrei-a totalmente entregue. Nos despedimos aquele dia, te telefonei e por algum motivo, no meio da conversa, me entristeci profundamente, e não quis mais te ver.

Estamos aqui, após seis anos, reencontrados. Você viveu muitas coisas pelo que me conta, deu dez voltas pelo mundo enquanto eu não saí do ponto em que senti a tua boca totalmente entregue. Estás quase casada, é impossível negar o amor que envolve a aura comum de vocês dois. Não consigo me ressentir por isso. Te ver despertou em mim o há muito adormecido desejo de escrever. Mas deixo isso para depois. O mundo cantado pela tua voz soa com uma beleza indescritível.

Alan Araguaia

4 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom, araguaia. lindo texto. Lindo mesmo, sem sacanagem. Acabei de le-lo pela primeira vez.
Quando li, assisti as cenas, procurei os personagens... e fiquei também pensando na arrogância das minhas bobagens...

Fabrício Mattos

objetonaoidentificado disse...

tu és foda, alan! eu já tinha até esquecido como tu és capazes de escrever incrivelmente bem. muito bom. que bom que vou fazer meu tcc contigo. :}
ei, essa picote existe?
Nerusa

Anônimo disse...

ei, escrevi errado aí em cima! mérdu(frânces)!

Anônimo disse...

Realmente lindo...
Adorei.


Natascha Damasceno.