domingo, 1 de abril de 2007

De tarde

Eu estava meio doente nesse dia... às vezes penso que o meu lema poderia ser "Literatura ou Vida!"

Eu não deveria ter cedido ao sono de tarde. A fresca brisa acariciava meu corpo exausto, enquanto pessoas descansadas tratavam dos seus assuntos cotidianos ao meu redor. Certamente dormiram naquela noite, portanto ainda que a brisa as convidasse para uma sesta, conseguiam resistir ao seu chamado. As frases que até pouco me chamavam a atenção, os tons de vozes bem distintos (estudava a arte de conversar, interessante propriedade humana) foram se misturando aos meus pensamentos, perdendo em nitidez. Agora não lutava mais contra as associações mentais, que na maioria do tempo julgava extravagantes e sem utilidade prática. Utilidade prática? Por que diabos me preocupo com isso? O certo é que não mais me preocupava. Estava deliciado em perceber como tudo se encaixava no mundo do sonho, tal qual variações de temas musicais em que as diferentes combinações não comprometem a harmonia da melodia.

Vivi pela centésima vez o episódio em que ela me dizia que podia ser, vamos viver juntos, e um sorriso franco, de excitação plena, emprestava ao seu rosto uma beleza onírica, me enchendo de ternura. Dessa vez ela não era mais ela, tinha faltado ao encontro e enviado uma substituta, como geralmente faz quando sente que está se repetindo.

Eu e ela que não era ela estávamos em uma rua sem carros, em que os pedestres passeavam pelo seu meio. Era uma rua de interior. Passou o meu filho montado em um cavalo, era um homem muito diferente de mim, só que eu sabia se tratar do meu filho, porque olhava como um filho olha um pai. Sem tomar impulso, ele saltou do animal e se encaixou perfeitamente entre os meus braços, que já estavam dispostos de maneira a acolhê-lo. Agora ele era uma criancinha, dos seus quatro anos, que me fitava com um olhar maduro, analisando meus cacoetes e sorrindo de forma irônica, mas amistosa. Eu estava com medo do meu filho, ele tinha entrado na minha alma, vasculhado todos os seus cantos empoeirados e devia conhecer até as áreas mais caóticas.

Aquilo era um pesadelo. Meu filho era um monstro. Um monstro perverso. Ele sabia de tudo, mas ficava calado, assim como essas pessoas que aprendi a evitar. Quis gritar com ele, dizer qualquer coisa como e então, vai ficar aí com essa cara de superior me olhando? Me diz o que estás pensando, exijo que digas, és o meu filho e me trata assim! Eu comecei a mexer a boca, mas logo notei que não saía nenhum som dela, e me resignei. Mas ainda assim queria uma resposta, ele conhecia a minha alma, sabia muito bem o que eu pretendia falar. Quis atirá-lo longe, mas meus braços estavam travados. Quis virar a cabeça de modo que não visse aquela criança insolente. Em vão, estava completamente preso a ele.

Ela que não era ela olhava a cena sem compreender nada. Notava-se pela sua testa franzida e os olhos marrons dilatados. Com essa expressão ela que não era ela me disse que queria casar comigo, e senão pela contrariedade evidenciada em seu rosto, nas suas palavras não se percebiam vestígios de que percebesse qualquer coisa estranha. Casar comigo? Aquilo era um pesadelo. A substituta não havia decorado as falas e improvisava mal. Se pelo menos soltasse uma fala genial, que desmanchasse a minha angústia. Mas falava em casar comigo, muito diferente de podia ser, vamos viver juntos.

Não dava mais por aquela criança estúpida. Ela mantinha a mesma postura de sempre, os olhos não se mexiam, o sorriso irônico continuava o mesmo. As asinhas do nariz não arfavam, apesar da brisa seus cabelinhos encaracolados não se moviam. Devolvi o olhar inquisidor ao pequeno demônio, eu também o conhecia plenamente, não por que tivesse violado a sua alma, mas porque alma ele não tinha. Era apenas um boneco. Senti meus braços novamente. Mas como não tinha medo nem ódio do boneco, não o atirei longe de imediato. Virei-o para um lado, virei para o outro, conferi os seus fundos, e após dar mais uma olhadela de desprezo para aquele rosto sem vida, joguei-o para a calçada.

Ela que não era ela continuava a falar em casar comigo, ter filhos... seu rosto não estava mais perplexo, mas seu sorriso era tímido e receoso, como se adivinhasse que eu não estava gostando daquela vez. Não suporto ver um sorriso daqueles. A compaixão me tomou de assalto, e para evitar que o receio se convertesse em desespero abracei-a firmemente e disse vamos casar, vamos assinar esses papéis, ser abençoados por Deus que a tudo vê e ser felizes com nossos filhos. Lembrei do demoniozinho que me atormentava ainda a pouco, mas descansei ao lembrar que era um truque. Meu filho passou a cavalo, era um homem feito, nada parecido comigo, mas me olhava como um filho olha um pai. Sorriu, estava feliz por me ver com a minha mulher, ela acenou para ele, radiante. Contagiado por tamanha felicidade, quase gargalhei, apertando o antebraço dela. Ela então abriu um sorriso franco, de excitação plena, emprestando ao seu rosto uma beleza de sonho, que me encheu de ternura e amor.

Eu não deveria ter cedido ao sono de tarde. Deveria ter economizado o sono, para gastá-lo à noite, que é quando se deve dormir, que é quando todos dormem para passarem o dia bem dispostos. Agora me reviro, inquieto na cama, lutando contra meus pensamentos absurdos, sedento por um pouco da felicidade que vivi naquela tarde.

Alan Araguaia

Um comentário:

Controversus disse...

Seria o sonho uma mensagem?
Inquietações desnorteantes, repostas sem respostas. Aonde estamos indo?

Fabíola Corrêa