terça-feira, 27 de outubro de 2009

O grande escritor

Tinham-no em conta de um grande escritor. Cinquenta anos de idade, desde muito cedo descobrira que se não escrevesse sua já frágil sanidade mental corria o risco de abandoná-lo definitivamente. Andava sempre com um bloco de papel, ou um pequeno caderno, e nele rabiscava suas impressões sobre o que via. Em grande parte, as anotações eram indecifráveis, seja pela caligrafia grotesca, deformada pelo tédio e pela ira, seja pela inegável originalidade das idéias. Tão originais que nem ele ali se reconhecia. Por esse motivo, não se incomodava se, de repente, alguém surpreendesse seus papéis e tentasse ler aquilo. Entre desenhos estranhos, como a lua que se curvava dando gargalhadas, e o homem composto de mãos, as palavras seguiam-se sem nada revelar.

Até que certo rapaz, magro, alto, e com um olhar enfadonho, lançou-o sobre aquelas frases. "Isso é literatura moderna!", disse. "Tu desvirtuaste a prosa, resgatando sua perdida função poética através do intra-diálogo", completou. O rapaz tinha bons conhecimentos em uma editora, e pediu ao homem que reunisse algo. Como fosse desempregado, e além disso se atraísse pela glória, gostou da idéia. Sem qualquer critério, remexeu os velhos cadernos, e separou uns tantos que já formassem um volume. Intitulou: "Blasfêmias".

E entregou ao rapaz moderno.Os editores, embora estranhassem aquele estilo, gostaram. Era uma obra fragmentária, segundo disseram. Em um mês, "Blasfêmias" estava nas livrarias de todo o país. Críticas em jornais, TV, convites para palestras em eventos diversos, logo o homem figurava no rol dos maiores intelectuais da nação. Alguns poucos olhavam-o com ceticismo, acusavam-o de oportunista, pseudo qualquer coisa. Só que ele já havia sido advertido que surgiriam tais reações, e sabia exatamente como se portar. Os jornalistas procuravam-o para saber o que tinha a dizer sobre a declaração do multiinstrumentista Fulano de Tal. Se fosse para televisão, inclinava a cabeça, sorria debochado e soltava coisas do tipo:

- Quero que esse cara se foda. Ele já era.

No dia seguinte, sua frase saía estampada nas revistas mensais e semanais, reverberava nos programas televisivos, ganhava os outdoors, e os admiradores do grande escritor só aumentavam. O multiinstrumentista, de ícone da cultura nacional, progressivamente tornava-se símbolo de nosso atraso. Ele, o poeta pós-concreto, a atriz cult e mais alguns ícones da cultura nacional, ao investir contra o laureado escritor, automaticamente eram relegados a símbolos de nosso atraso. Os demais logo perceberam essa regra, e, muito embora quisessem enxovalhar o polêmico escritor, disso se abstinham, em nome da própria sobrevivência. Em vez disso, eram orientados a enaltecê-lo. O dramaturgo de primeira, quando apareceu a oportunidade, asseverou:

- Vivemos uma renovação no cenário socio-artístico nacional, e ele é o símbolo disso.

E daí seguiam-se loas e mais loas ao cantado em verso e prosa escritor, e os anos foram passando, sem que alguém ousasse questionar o seu inquestionável valor. Casou-se trinta vezes com as mulheres mais desejadas da nação, e por diferentes razões. Enquanto isso, continuava a encher cadernos e mais cadernos com sua refinada literatura, no entanto, após "Blasfêmias" nada mais publicou. Também nada mais falou após repetir aquelas palavras para os cinco ex-ícones que ousaram enfrentá-lo. Aos cinquenta anos morreu de cirrose, e passados outros vinte começa a ganhar fôlego uma tendência acusando-o de ter sido uma grande farsa.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Casa Branca: "a Fox mente"

Barack Obama declarou guerra aos setores mais conservadores da imprensa norte-americana, como a rede Fox, e os jornais New York Times e Washington Post. Em especial a Fox, classificada pela diretora de comunicação de Obama, Anita Dunn, como um apêndice do Partido Republicano, em vez de uma empresa jornalística.

"A rede Fox está em guerra contra Barack Obama e a Casa Branca, [e] não precisamos fingir que o modo como essa organização trabalha seria o modo que dá legitimidade ao trabalho jornalístico." - comenta Dunn.

O governo dos EUA considera que falar à Fox é o mesmo que debater com a oposição, e assim a rede passa a ser tratada.

É internacionalmente conhecida a fama ultraconservadora da rede Fox, mas esta é a primeira vez que um presidente americano entra em rota de colisão com o canal líder de audiência no país. Um post recente no blog da Casa Branca traz como título uma frase familiar a nós, paraenses: "a rede Fox mente".

Para quem não se lembra, o ex-prefeito de Belém Edmilson Rodrigues lançou a campanha "O Liberal mente", nos idos dos anos 90, dando uma resposta à altura da oposição virulenta que este jornal fazia à sua gestão.

A coincidência não evidencia uma (inexistente) semelhança política entre Edmilson e Obama, mas um padrão de comportamento universal da imprensa reacionária, frente a governos minimamente progressistas - sim, para a realidade dos EUA Obama pode ser considerado progressista. Os ataques constantes, carregados de ódio e ironia, exigem respostas categóricas, sob pena dos governos acabarem sendo reféns desses grupos.

Lula poderia aprender um pouco com Edmilson e Obama.

Alan Araguaia

Informações deste post no blog do Azenha

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Sobre golpes brandos

Quem ainda duvidava do caráter manipulador da chamada grande imprensa nacional, apelidada por Paulo Henrique Amorim de PiG (Partido da imprensa Golpista), deve render-se aos fatos diante da cobertura que fazem do golpe em Honduras. Para começar, criaram um eufemismo, largamente utilizado por colunistas (ou "colonistas", como prefere o já citado PHA) da estirpe de Miriam Leitão, Dora Kramer e Eliane Catanhêde (percebi agora que as mulheres estão com tudo nesse ramo): "governo de facto" (já com a devida atualização gramatical, é claro). Essa expressão me faz lembrar aquela outra, que diz que tal coisa "é de fato, mas não de direito", ou vice-versa. Matei a charada! Para não dizer que os golpistas não são por direito o governo de Honduras, escorregam para o tal "governo de facto". Uma mensagem subliminar.

Desde que os golpistas fecharam uma rádio e uma TV de oposição, na última segunda-feira (28), percebi pelo menos no portal UOL uma mudança de postura. A manchete falava de governo golpista. Obviamente o espírito corporativista falou mais alto: mexeram com os meios de comunicação, nossos iguais! Enquanto os golpistas depuseram e expulsaram o presidente democraticamente eleito do país; reprimiu duramente manifestações populares, resultando inclusive em mortes e impuseram o toque de recolher, até então eram o "governo interino" ou "governo de fato".

O UOL, inclusive, agiu dissimuladamente em uma matéria de ontem (não achei o link), ao dizer que "consultou especialistas", os quais afirmaram o que todos já sabíamos: chamar o governo de Michelleti de "interino" é uma concessão a um regime golpista! A tímida "errata" saiu ensanduichada em uma matéria mais ampla sobre a crise em Honduras. Quer dizer que ingenuamente o portal errava, agora aprendeu que o certo é o termo golpista? Sei, acredito!

Tudo isso faz lembrar uma sucessão de episódios da História, em que num primeiro movimento a mídia apóia abertamente golpes de Estado, para depois posar de vítima e, finalmente, calar-se até que a conjuntura aponte para uma redemocratização, quando se apresenta como se fosse tudo o que sempre quis. Devemos ficar atentos, pois um golpe no Brasil não é coisa tão improvável. E se acontecer, as informações chegarão nubladas à população. Vão dizer que golpista é o presidente de plantão, que quer se perpetuar no poder, fazer reforma agrária na marra, controlar os media, entre outras atrocidades. E que contra isso faz-se necessário que os demais Poderes cortem as asinhas do tal presidente... não é impossível.

Alan Araguaia

domingo, 9 de agosto de 2009

Um choque de realidade

No blog Hupomnemata, do professor Fábio Castro:

O caso é que as pesquisas caminham na direção de onde há cooperação científica consolidada. Na comunicação da UFPA não temos isso. Não tenho parceiros, minha faculdade não tem grupos de pesquisa e a percepção que predomina sobre um futuro curso de mestrado é que, para fazê-lo, basta um projeto.

Leia a íntegra do post.

citado por Alan Araguaia

domingo, 2 de agosto de 2009

No limite

O Programa "No limite III", da rede globo, está acontecendo numa fazenda alugada, entre Flecheiras e Lagoinha, no litoral leste do Ceará.

Sei disso porque semana passada estive lá fazendo uma visita com minha esposa, minha mãe e meu irmão menor. Lagoninha é uma pequena praia, muito bonita, que recentemente recebeu um grande contigente de hotéis, que estão acabando com seu litoral (lá as dunas já não existem mais). Existe lá um hotel que teve suas obra embargada pelo poder público, por ter mais de quadro andares.

Os bugueiros e moradores do local não estão satisfeitos com a grande emissora, pois sua economia, de aluguel de quadriciclos e buggys para andar na areia, está parcialmente tolida, por causa do fechamento da ponta de praia que liga Flecheiras a Lagoinha. As pessoas que já conhecem o passeio não querem fazê-lo "mais curto", e deixam de ir, deixando os bugueiros sem receita. Ouvi várias vezes eles dizendo de uma ação que estão movendo contra a Rede Globo, por obstrução de seu trabalho.

Parece que a globalização é descontínua e desigual, mas chega para todos.

Fabrício Mattos

Folhetinesco

A Folha de São Paulo está com raiva da TV Brasil. Diz que é desperdício do dinheiro público. Bom, nada consta, no editorial abaixo, sobre o empenho de construir pela primeira vez um sistema público de TV no Brasil, que tem imensas falhas, obviamente, mas que começa a veicular uma programação diferenciada da grande mídia. assisti recentemente um documentário sobre o trabalho precário na africa subsaariana, vejo seu telejornal todos os dias (que também tem muitas falhas, mas o conteúdo é superior aos jornais : da Band, Nacional e do SBT).

O Repórter Brasil (telejornal noturno da TV Brasil) passa no horário da novela das nove da globo, e traz algumas inserções diárias de vídeos feitos por organizações da sociedade civil, explicações sobre temas da agenda contemporanêa e busca sempre notícias das cinco regiões do país.

Quanto à sua extinção (proposta pela Folha), podemos fazer uma analogia com o exemplo histórico do Ministério da Cultura. Sob o pretexto de que "o Estado não deve interferir na cultura" e "devenmos enxugar o estado, cortando cusstos", em 1992 Fernando Collor extinguiu o Ministério da Cultura do Brasil, transformando-o em sercretaria.

Mesmo após sua "recriação", em 1994, até hoje o Minc sofre com o impacto daquela época: falta de pessoal qualificado a longo prazo e instabilidade institucional, apesar deste quadro se reoganizar com a gestão Lula/ Gil/ Ferreira.

Será que a melhor saída é extinguir uma instituição nascente, que ainda está em fase de estruturação (acabou de completar um ano)? a sociedade civil a critica, mas a quer.
Parece que os empresários da comunicação, não.


Segue abaixo o seu editorial publicado em 31 de julho de 2009:

TV que não pega

LANÇADA EM 2007 pelo governo como se fosse uma espécie de versão brasileira da BBC, a TV Brasil já perdeu 6 dos seus 15 conselheiros originais em pouco mais de um ano e meio. Coincidentemente, a TV criada por Lula acabou de ganhar uma nova identidade visual, que, segundo comunicado da emissora, dará “uma cara moderna e atual” ao logotipo. Mas pouca gente ficou sabendo, dado o exíguo alcance do canal.A TV Brasil integra a EBC (Empresa Brasil de Comunicação), que tem Orçamento de R$ 350 milhões por ano e abarca nove rádios e duas outras emissoras, além de seu carro-chefe.O governo queria, com a EBC, criar uma grande rede pública nacional. Após a saída de três diretores vinculados ao Ministério da Cultura, o controle ficou nas mãos da Secretaria de Comunicação, do ministro Franklin Martins. A TV que se queria pública é antes de mais nada um cabide de empregos.O lance mais recente da novela da emissora foi o anúncio feito à Folh a pelo presidente do conselho curador, Luiz Gonzaga Belluzzo, de que entregará o cargo.Antes dos problemas políticos, a empresa padece de irrelevância técnica. Tem alcance muito restrito pela rede aberta, funcionando basicamente para clientes de operadoras de TV por assinatura. Segundo a emissora, muitos espectadores assistem à programação por antena parabólica, o que também serve como justificativa para não divulgar dados sobre audiência.O fato é que a TV Brasil já começou mal, através de uma medida provisória, em vez do encaminhamento por projeto de lei. Tem 15 “representantes da sociedade civil” em seu conselho, todos nomeados pelo presidente Lula. Os vícios de origem e o retumbante fracasso de audiência recomendam que a TV seja fechada -antes que se desperdice mais dinheiro do contribuinte.


Fabrício Mattos

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Abaixo-assinado em favor de Lúcio Flávio Pinto

O repórter e editor do Jornal Pessoal, de Belém do Pará, Lúcio Flávio Pinto, foi condenado pelo juiz Raimundo das Chagas Filho, da 4ª Vara Cível da capital, a pagar uma indenização de R$ 30 mil aos irmãos Romulo Maiorana Júnior e Ronaldo Maiorana, proprietários das Organizações Romulo Maiorana, uma das empresas de comunicação mais influentes da Região Norte, cuja emisssora de TV é afiliada à Rede Globo. A sentença, expedida no último dia 6 de junho de 2009, refere-se a uma das quatro ações indenizatórias movidas pelos irmãos contra o jornalista que, em 2005, publicou artigo ("Um Império ao Norte", leia ao lado) em um livro organizado pelo jornalista italiano Maurizio Chierici, depois reproduzido no Jornal Pessoal, no qual aborda, entre outros aspectos, a atividade de contrabandista do fundador das ORM, Romulo Maiorana, nos anos de 1950, o qu e teria motivado a ação, pois os irmãos consideraram ofensivo o tratamento dispensado à memória do pai. Além da indenização por supostos danos morais, o juiz ainda obriga o jornalista a não mais referir-se aos irmãos em seus próximos artigos.

Lúcio Flávio Pinto, de 59 anos, em quatro décadas de jornalismo é um dos profissionais mais respeitados no Brasil e no exterior. Seu Jornal Pessoal resiste, de forma alternativa, há 22 anos, sem aceitar patrocínio ou anúncios, garantindo a independência de seu editor frente aos temas públicos do Pará, sobretudo na seara política. Por sua atuação intransigente frente aos desmandos políticos, às injustiças sociais e ao desrespeito aos direitos humanos, recebeu prêmios internacionais importantes: em 1997, em Roma, o prêmio Colombe d’oro per La Pace; e em 2005, em Nova Iorque, o prêmio anual do CPJ (Comittee for Jornalists Protection). Além disso, é premiado com vários Esso. É também autor d e 14 livros, tendo como tema central a Amazônia, sendo os mais recentes “Contra o Poder”, “Memória do Cotidiano” e “Amazônia Sangrada (de FHC a Lula)”.

Esse fato demonstra o que significa fazer jornalismo de verdade na capital do Pará: uma condenação.

Por isso, nós, abaixo-assinados, solidarizamo-nos com Lúcio Flávio Pinto, pedindo a revisão de sua condenação em nome da democracia e da liberdade de pensamento.

Para assinar, acesse aqui.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Sobre Juvêncio

Deixo aqui, como o Fabrício, meu pesar pela morte de Juvêncio de Arruda, que, apesar de ter conhecido apenas pelos seus posts no 5ª Emenda, e por um debate do qual ele participou no curso de Comunicação da UFPA, rapidamente se tornou uma referência pra mim. Todo santo dia, como tanta gente, uma das primeiras coisas que fazia ao sentar-me em frente a um computador era conferir o Quinta. Queria saber o que estava rolando na cena política da cidade, mas para além disso o que me atraía era seu estilo inteligente e bem-humorado. Sempre pensei, enquanto lia: "taí um cara que um dia quero conhecer". Infelizmente, fica pra uma próxima, aproveitando que acredito na existência de uma próxima.

Que possamos nos capacitar para a tarefa de não permitir que o silêncio impere.

Alan Araguaia

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Pequena reflexão sobre o ser

Um pequena reflexão sobre o sentido e sobre o ser.

Homenagem a Juvêncio e seu Quinta Emenda.

O mapa da alma não tem fronteiras - Eduardo Galeano, publicado originalmente na Carta Maior

(*) Palavras proferidas em Montevidéu, dia 9 de julho, quando Galeano foi condecorado com a Ordem de Maio, da República Argentina.

Permitam-me agradecer esta premiação que estou recebendo, que para mim é um símbolo da terceira margem do rio. Nesta terceira margem, nascida do encontro das outras duas, florescem e se multiplicam, juntas, nossas melhores energias, que nos salvam do rancor, da mesquinhez, da inveja e de outros venenos que abundam no mercado.

Aqui estamos, pois, na terceira margem do rio, argentinos e uruguaios, uruguaios e argentinos, rendendo homenagem a nossa vida compartilhada, e, portanto, estamos celebrando o sentido comunitário da vida, que é a expressão mais íntima do sentido comum.

Ao fim e ao cabo, e perdão por ir tão longe, para um ponto onde a história ainda não se chamava assim, lá no remoto tempo das cavernas, como se viraram para sobreviver aqueles indefesos, inúteis, desamparados avôs da humanidade? Talvez tenham sobrevivido, contra toda evidência, porque foram capazes de compartilhar a comida e souberam defender-se juntos. E se passaram os anos, milhares e milhares de anos, e vemos que o mundo raramente recorda essa lição de sentido comum, a mais elementar de todas e a que mais nos faz falta hoje.

Eu tive a sorte de viver em Buenos Aires, nos anos 70. Cheguei corrido pela ditadura militar uruguaia e acabei saindo corrido pela ditadura militar Argentina. Não saí: me saíram. Mas nestes anos comprovei, uma vez mais, que aquela lição pré histórica de sentido comum não havia sido esquecida de todo. A energia solidária crescia e cresce ao vai e vem das ondas que nos levam e nos trazem, argentinos que vêm e vão, uruguaios que vamos e viemos. E no tempo das ditaduras, soubemos compartilhar a comida e soubemos defender-nos juntos, e ninguém se sentia herói nem mártir por dar abrigo aos perseguidos que cruzavam o rio, indo para lá ou vindo de lá.

A solidariedade era, e segue sendo, um assunto de sentido comum e, portanto, era, e segue sendo, a coisa mais natural do mundo. Talvez por isso sua energia, sempre viva, foi mais viva do que nunca nos anos do terror, alimentada pelas proibições que queriam mata-la. Como o bom touro de lida, a solidariedade cresce no castigo.

E quero dar um testemunho pessoal de meu exílio na Argentina.

Quero render homenagem a uma aventura chamada Crise, uma revista cultural que alguns escritores e artistas fundaram com o generoso apoio de Federico Vogelius, onde eu pude aportar algo do muito que me havia ensinado Carlos Quijano, em meus tempos do semanário Marcha.A revista Crise tinha um nome um tanto deprimente, mas era uma jubilosa celebração da cultura vivida como comunhão coletiva, uma festa do vínculo humano encarnado na palavra compartilhada. Queríamos compartilhar a palavra, como se fosse pão.

Nós, sobreviventes daquela experiência criadora, que morreu afogada pela ditadura militar, seguimos acreditando no que acreditávamos então.

Acreditávamos, acreditamos, que para não ser mudo é preciso começar por não ser surdo, e que o ponto de partida de uma cultura solidária está na boca daqueles que fazem cultura sem saber que a fazem, anônimos conquistadores dos sóis que as noites escondem, e eles, e elas, são também aqueles que fazem história sem saber que a fazem. Porque a cultura, quando é verdadeira, cresce desde o pé, como alguma vez cantou Alfredo Zitarrosa, e desde o pé cresce a história. A única coisa que se faz desde cima são os poços.

A ditadura militar acabou com a revista e exterminou muitas outras expressões de fecundidade social. Os fabricantes de poços castigaram o imperdoável pecado do vínculo, a solidariedade cometida em suas múltiplas formas possíveis, e a máquina da separação continuou trabalhando a serviço de uma tradição colonial, imposta pelos impérios que nos dividiram para reinar e que nos obrigam a aceitar a solidão como destino.

À primeira vista, o mundo parece uma multidão de solidões amontoadas, todos contra todos, salve-se quem puder; mas o sentido comum, o sentido comunitário, é um bichinho duro de matar. A esperança ainda tem quem a espere, alentada pelas vozes que ressoam desde nossa origem comum e nossos assombrosos espaços de encontro.

Eu não conheço felicidade maior que a alegria de reconhecer-me nos demais. Talvez essa seja, para mim, a única imortalidade digna de fé. Reconhecer-me nos demais, reconhecer-me em minha pátria e em meu tempo, e também me reconhecer em mulheres e homens que são meus compatriotas, nascidos em outras terras, e reconhecer-me em mulheres e homens que são meus contemporâneos, vividos em outros tempos.

Os mapas da alma não têm fronteiras.
Tradução: Katarina Peixoto


Fabrício Mattos

O silêncio e a esfera pública

Na Amazônia, a comunicação, a transparência e o debate público, cada vez mais, tornam-se um esporte de combate, como dizia Bourdieu, a respeito da sociologia. Gostaría de deixar aqui, neste blog, os meus pêsames pela morte de Juvêncio Arruda (com quem, infelizmente, debati apenas uma vez) e a minha revolta pelo silenciamento de Lúcio Flávio.

Depois do trágico,

imperará o silêncio?

Fabrício Mattos

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Castells e a internet

Caros amigos,

Posto para vocês uma entrevista de Manuel Castells a respeito de sua pesquisa e de alguns dados sobre a internet e suas formas de sociabilidade. Vale a pena ler.

Fabrício Mattos

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Diploma - outra posição

Evidenciando o nome deste blog, proponho uma segunda posição neste debate sobre o diploma de jornalismo. Talvez complementar à do Araguaia, mas veremos.

A nã-obrigatoriedade do diploma de jornalismo implica obviamente num processo de maiores proporcões, para além do "fato consumado" da decisão do STF. Está claro, para mim, que é o ápice de ganho dos conglomerados midiáticos numa relação de força entre a maior instituição de Justiça do Brasil e esta autodenominada "grande imprensa". O desgaste da figura de seu presidente, Gilmar Mendes, seguidos de "pequenos ou grandes escândalos" (arma funcional dessa mídia) ligados às decisões do STF, demonstram e demarcam este quadro. Não podemos compreender a história (qualquer história) apenas olhando "os fatos", nos posicionarmos daí pra frente. O "resgate" da legitimidade dessa instituição está latente nesse jogo, e a trégua que segue é uma demonstração disso. Essa é uma questão.

Segundo, a "cassação" do diploma não veio sozinha. Ela aboliu também, um ano antes, a Lei de imprensa, desqualificada basicamente por ter sido criada na época da ditadura militar. Embora muitos de seus artigos fossem retrógrados (em clara relação com aquele regime), existiam alguns ganhos para o cidadão comum, como o fato de poder recorrer à justiça dentro de uma legistação que previa tais crimes específicamente nessa área.

Essas "desregulações", promovidas pelo Supremo Tribunal em conjunto com os conglomerados, tem também uma relação profunda com o próprio campo de atuação dos profissionais ligados à área. Ora, estamos falando, aqui, de uma das áreas estratégicas de conformação dos imaginários sociais do mundo contemporâneo, atuação dos movimentos sociais, e conformação da democracia, como política de maior abrangência. A democracia não é, e nunca será, conformada por uma gama qualquer de intelectuais, sejam eles jornalistas, sociólogos, advogados, biólogos, matemáticos etc.

O debate não pode ficar pautado apenas na ilusão do fato de que tal ou qual profissional é "melhor" ou "pior" por ter cursado um curso de jornalismo. Até porque, esta entidade, "curso de graduação em jornalismo" tem também suas contradições. Você não pode dizer que o curso de jornalismo da UFPA é igual a um curso de jornalismo na UFRJ ou na USP.
A diferença não está, em primeira mão, na qualidade dos cursos, mas nas formas de autonomização do jornalismo como campo de importância acadêmica. A comparação entre esses espaços comporta seus desenvolvimentos específicos (por exemplo, a criação de cursos de mestrado e doutorado, o que qualifica a discussão), a formação de seus professores (já que estamos falando de um curso eminentemente multidisciplinar), e tambem, em níveis mais gerais, das políticas públicas para educação no Brasil, privilegiando alguns "centros".

Concordo com o Araguaia e não sou a favor da obrigatoriedade do diploma específico de jornalista para exercer a profissão. Mas é importante que tenha um diploma, principalmente em sua área de atuação. Mas, pensando de outro modo, como seria este texto se eu não tivesse passado pela universidade. E este blog, existiria? A universidade proporciona, além de debates e diplomas, encontros e experiências. Antes do diploma, o mundo pelo qual o aluno passa também tem um lado de defesa da sociedade, olhar a mídia e ter a oportunidade de se posicionar sem depénder exclusivamente dela. É uma mediação importante contra os mandos e desmandos das empresas. E essa mediação diz respeito a construção da posição social de cada um.

Para finalizar, será o jornalista um "especialista em generalidades"? Não creio, principalmente no que tange às empresas em suas conformações de cadernos (política, cultura, polícia etc.). Quem escreve tais cadernos são os especialistas em cada área, e a maioria tem diploma, sendo esse de jornalismo ou não. Há uma diferença entre exercer a comunicação como forma de cidadania, disputando os espaços públicos, e exercer uma profissão, que também é uma forma de exercício da demacracia, mass tolida, pelas suas regras internas. Mas, as vozes ouvidas, cotidianamente, em todos eles, vêm de onde? Das universidades. É sintomático que as mídias não necessitem mais do diploma, mas recorram aos "outros" diplomados para construir o seu discurso.

Eu vou-me embora pra outro lugar, talvez uma mistura de sociologia com antropologia.

Fabrício Mattos

quinta-feira, 18 de junho de 2009

STF deu uma dentro

O Supremo Tribunal Federal (STF) acertou ao anular a obrigatoriedade do diploma de jornalismo para quem deseje exercê-lo. Corro o risco de ser execrado pela maioria dos colegas ao falar isso, mas realmente não vejo motivos para se exigir um diploma específico no exercício de uma atividade tão generalista como é o jornalismo. O excesso de tecnicismo aliás, que não é o mesmo que profissionalismo, não tem sido nada saudável.

Os jornais são todos iguais, os repórteres de TV parecem ter saído da mesma fornada, tudo muito engomadinho e asséptico. Os jornalistas em geral vêem o jornalismo como uma forma de ganhar dinheiro. Por isso ouvimos tanto aquela conversa fiada de que "esse é o meu trabalho", quando um deles é questionado sobre um deslize ético. Dizem que foram mandados. Como se não pudessem pensar por conta própria e dizer: isso eu não faço. Garanto que não morreriam de fome com essa postura, e os grandes nomes do jornalismo confirmam isso.

Deveríamos tratar o jornalismo como um exercício de cidadania, não uma profissão. Não dá pra comparar - como alguns querem - a especialização necessária para realizar uma cirurgia, ou construir um prédio, com a apuração dos fatos e posterior redação de um texto. Não estou dizendo que esta última é inferior à primeiras, ou que seja mais "fácil". Tanto não é fácil que dificilmente lemos na imprensa uma matéria bem apurada, ou mesmo bem escrita. Outro dia estava lendo a "Troppo" - "a revista de domingo de 'O Liberal'" - e me deparei com esta barbaridade:

Fulana de Tal se recente de não sei o que lá.

Está claro que o redator quis dizer que a Fulana se ressente por alguma coisa. Dias depois, li na mesma publicação o mesmíssimo erro, evidenciando, além de tudo, vício e pobreza de linguagem. Esse é só um exemplo. Diariamente os jornais locais nos brindam com cada burrice! - sem contar as espertezas de praxe.

Não tenho ilusões de que a desobrigatoriedade do diploma, por si só, vá melhorar a qualidade do jornalismo praticado no Brasil. Tanto dentro quanto fora das faculdades, os "despreparados" são maioria. A Educação precisa melhorar e muito, para que as pessoas aprendam a escrever e interpretar o mundo. Um curso superior sem dúvida é um grande diferencial. Inclusive de jornalismo, mas não somente.

Alan Araguaia

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Qual realidade?

Ontem, pela primeira vez, vi o que os tecnólogos contemporâneos chama de "realidade aumentada". Trata-se de um dispositivo teconológico que produz uma virtualidade contínua, podendo ter vários usos, de acordo com o interesse do usuário.

Apesar do eufemismo do nome, acredito que estamos diante de mais uma das "pequenas revoluções" que permeaim o nosso tempo.

Muito se falou do Youtube, suas possiblidades de criação, de usos, dos impactos sobre o estatuto de verdade das notícias, sua influência sobre o jornalismo etc. Mesmo este simplório blog que vocês leêm agora, foi criado e desenvolvido numa dessas discussões, em sala de aula.

A realidade aumentada, ainda em construção (como tecnologia), trata de um sentido temporal mais enviesado e ambíguo, bem ao gosto do realtivismo a que nos submete o contemporâneo.

Dêem uma olhada no site do Jornal da Globo e vejam do que estou falando.
Para experimentar como funciona, clique aqui.

É basicamente o seguinte: você espera carregar o programa de webcam, clica em permitir e mostra a figura que você imprimiu (o link está na página da globo).
Quando você imprimir a figura, veja se a impressão está com uma boa qualidade. Outra coisa (que eles não dizem) se o papel for duro, melhor, porque aí o foco da câmera é mais certeiro. Eu fiz o seguinte: imprimi e dobrei o papel em partes de modo que ficasse bem o quadradinho da impressão.

Boa experiência pra você.

Fabrício Mattos

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Memórias esparsas I

No início da minha adolescência tive uma breve militância no Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). Minha irmã mais velha já fazia parte do PSTU há uns três ou quatro anos e, evidentemente, isso me influenciou. Nasci em uma família de esquerda: meu pai se definia como anarco-sindicalista, além de simpatizante do PSTU. Tendo algumas idéias do que significava ser anarco-sindicalista, não entendia como ele podia simpatizar com o partido. Enfim. Desde cedo, o meu vício de exigir coerência alheia se apresentava.

Mas esse texto pretende ser um inventário de minha "trajetória política". Até para descobrir no que hoje eu acredito e no que deixei de acreditar.

No início de 2002, após um congresso partidário, me afastei do PSTU. O verbo "afastar" é bem apropriado. Não me "desliguei" do partido. Simplesmente deixei de ir, sem dar explicações. Junto com Flávio, Josi, Aruana (lembro que minha irmã estava meio em cima do muro), Solano, e acho que o Krato também, fiz parte da tendência minoritária - que acabou continuando minoritária, nossas teses foram derrotadas. Hoje tenho uma certa vergonha por não me lembrar o que eram exatamente essas teses. Sei que eram as mais legais. Eram um tanto heterodoxas, e isso me agradava.

Esse fato - não lembrar das teses - talvez seja sintomático de uma característica de minha participação na política - não sei se boa ou ruim: o "estar junto", o sentimento de identificação era o que mais me interessava. Quando se falava em revolução, minha mente e coração eram mobilizados menos pela idéia da sociedade justa e igualitária dela resultante, do que a sensação inebriante de "tomar o poder", acompanhado por uma multidão de companheiros. Imaginava nós juntos cantando os hinos comunistas, arrastando os burgueses aos paredões, com aquele sentimento que deve ser inigualável de protagonizar um grande momento da História.

Sim, a dimensão estética da Revolução me interessava (bem) mais do que a política. Escrevo isso como uma constatação que surge nesse momento, não querendo fazer nenhuma defesa.

Após essa militância no PSTU, tive algumas poucas experiências organizativas. Não queria rumar para as outras correntes que existiam (algumas ainda estão aí): Força Socialista, CST, PCdoB, Articulação... pensava que se desgostara do PSTU, não seriam esses que me empolgariam.

Era também o que pensavam alguns companheiros que haviam saído do PSTU. Eu, Flávio, Josi, Valdir, Karina, Léo, Fábio... começamos a nos reunir, a estudar a conjuntura. "Caracterizávamos" (há muito tempo não uso essa palavra!) que o movimento de massas vivia um momento de refluxo. Os ativistas e as massas estavam desiludidas com as lideranças, que cada vez mais se "endireitavam". Ainda hoje, concordo com essa visão. A esquerda no poder não é tão diferente assim, afinal. Pra dizer o mínimo.

Nosso grupo, que chamamos de "G", por brincadeira, não durou muito. Não sei dizer por quê. Acho que desanimamos. Éramos muito pequenos! Cada um foi cuidar da sua vida.

Aí ingressei no curso de Comunicação Social da UFPA. Com 17 anos, já estava cansado de muita coisa. Olhava com ceticismo o movimento estudantil universitário. Ali certamente tinha um monte de arrogância da minha parte, mas encarava o entusiasmo de meus colegas em descobrirem a política como uma coisa infantil. Centro acadêmico, passagens em sala de aula para mobilizar contra isso, contra aquilo, ocupação do prédio da Reitoria... olhava para tudo isso e me perguntava: para quê? No começo acompanhei um pouco o movimento, mais por força do hábito do que por outra coisa. E também porque as meninas eram bonitas. Era gostosa aquela companhia.

Hoje, após um tempo de canseira que embaralhou minhas idéias, questiono-me sobre o que sobrou de toda essa história. Só uma coisa parece ser certa: continuo de esquerda.

Alan Araguaia

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Conto parágrafo

O olhar dela havia de súbito mudado. Como se uma sombra espessa tivesse ali se instalado, sombra que ocultava-lhe completamente a visão. E ficava ali, rondando, sem coragem de verbalizar a pergunta que trazia na cabeça: o que houve? Ficava ali, ruminando, até que, cansado, dizia amanhã nos vemos. Ela assentia com a cabeça, levava-o até a porta e agora a sombra estava mais intensa, faiscava-se. Ia embora cheio de perguntas, debatendo-se todo para livrar-se delas. Já estava longe, na rua, não admitia tamanha intromissão. Queria seu raciocínio e energia de volta. Difícil tarefa. Nesse dia andou mais do que o habitual, procurando, procurando.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Valeu, Fábio.

Fábio Castro despediu-se hoje da Secretaria de Estado de Comunicação (Secom). Foi aplaudido pelos servidores, ganhou uma placa de homenagem e fez questão de tirar fotos com todos os presentes. Tenho grande admiração e respeito pelo professor Fábio, que fez um trabalho intelectual e moralmente honesto na Secom. Fica aqui o meu reconhecimento.

Alan Araguaia

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Um encontro casual

Andava nas ruas abarrotadas de gente no centro, olhando para um depois para outro, tentando adivinhar o que significavam aquelas fisionomias. Não era algo meditado, não havia ciência alguma nesse ato. Simplesmente impulso, ao qual se entregava autocomplacente. Um homem em particular chamou-lhe a atenção em todo aquele movimento. Vestido com um roto paletó e calças um pouco curtas para si, deixando entrever as canelas finas, andava de um lado para o outro como quem busca uma solução. Mas não parecia concentrado em reflexões, pelo contrário: dedo em riste, livro grosso aberto na mão, dirigia-se a todos os passantes. De certo fazia um discurso. Trinta anos haviam se passado desde que deixou o colégio, mas reconheceu Frederico, o amigo inseparável. Aproximou-se surpreso, mas feliz com aquele reencontro.

"Arrependam-se", gritava Fred, exaltado. "Esse é o último chamado dos céus!" Sorriso tímido, ele caminhava devagar na direção do amigo de outros tempos. Mais retraído ficou quando ao fitá-lo, Fred não esboçou nenhuma alteração, mantendo os mesmos olhos injetados. "Tu, irmão, não mais andes sem rumo, com um vazio no coração. Ouça o chamado de Deus!", bradou em sua direção. Assustado com a admoestação particular, já desanimara de reavivá-lo a lembrança. Ainda assim, esforçando a voz para fora, perguntou: "Fred, és tu?".

Surpreso com a interpelação, coisa rara naquele seu ofício, o pregador franziu ainda mais a testa e assim ficou durante longos segundos. A essa altura, o outro já se recriminava duramente por ter se aproximado. "Que bobagem! Faz tanto tempo que não nos vemos! Devia ter seguido meu caminho", pensava angustiosamente. "Desculpe, amigo, continue seu trabalho", despediu-se afoitamente. Mas quando preparava o primeiro passo adiante, Fred conteve-o com a mão e disse:

"Deus marcou esse encontro. Vivi esses anos a mais amarga vida, por desobediência às suas sagradas leis", declarou em tom de cerimônia. Ele não podia conter mais o desagrado da situação. Sua mente dizia: "Fuja!" Mas ficou, receando magoar o amigo. Ouviu Fred relatar durante cinco minutos todo o sofrimento por que passara, tendo sido mendigo e adquirido doenças incuráveis. "Foi aí que a dor forçou-me a entrar em uma igreja, converti-me e hoje vivo feliz", concluiu, e só aí abriu um largo sorriso. Abraçou-o emocionado, e fez o convite para ir assistir o culto à noite. Ele aceitou vivamente, pegou um folheto e despediu-se. "Até mais tarde!", ainda gritou de longe. Nunca mais viu Fred naquela rua abarrotada do centro.

sábado, 9 de maio de 2009

Surto psicótico

Não resistindo aos seus impulsos mórbidos, desde ontem o caderno Polícia do jornal Diário do Pará traz fotos de cadáveres (mal) ocultados por tarjas pretas. Nelas, os dizeres: "Censurado pela Justiça do Pará". Dá vontade de rir de tamanha falta de senso de realidade. Será que eles esperam uma manifestação popular em seu favor?

quinta-feira, 7 de maio de 2009

A porta-voz não solicitada

Para quem Eliane Cantanhêde fala? A pergunta me ocorreu após ler a sua coluna de hoje, reproduzida no Diário do Jader Barbalho, p. B-2. É muito ladina, essa Eliane. Ela me fisgou pelo primeiro parágrafo da coluna, em que ironiza a esquizofrenia do nosso presidente, ao tratar pilantras do quilate de Collor e Renan Calheiros como velhos companheiros. Até aí tudo bem. "Gente boa, essa Eliane", penso ingenuamente, enquanto sigo a leitura. No entanto, o verdadeiro objetivo do texto revela-se na segunda metade: fazer lobby pela privatização da Infraero. Em seu vocabulário neo-liberal, privatização é sinônimo de "sanear cargos, finanças e operações".
Para Eliane, o remédio para o mal da corrupção e da "boquinha" é privatizar. Ou seja: se é pra particulares apropriarem-se indevidamente dos bens públicos, que estes deixem de ser públicos, oras. Simples, não? Mas eu discordo.

Não vou dizer que sou essencialmente contra toda e qualquer privatização (também não sou a favor). Mas percebi no texto de Eliane Cantanhêde uma tentativa descarada de manipular a opinião pública, tratando a privatização como se fosse uma bandeira nacional. Fazendo crer que os empresários são todos homens de bem, interessados no progresso do país. Veja por exemplo esse trecho: "ao contrário de governos, empresário sério não põe seu rico dinheirinho em empresas bagunçadas e suspeitas". Certo. Mas onde estão esses empresários sérios? Certamente que não nos setores já privatizados, como o das Telecomunicações, envolvida até o pescoço em todos os escândalos nacionais da última década. Quem duvida que é essa mesma turma - que apesar de tantas denúncias é tratada pela mídia como "empresários sérios - a maior candidata a abocanhar o setor de aeroportos?

Eliane diz ao final do texto, incluindo-me sem a minha vontade em seu bloco: "a gente fica de olho". Não tenho a menor dúvida disso.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Tecnologias da exclusão

Quebro o silêncio sepulcral desse blog motivado por um bom artigo que acabo de ler no Congresso em Foco. Aliás, esse site passa desde já a constar da minha lista de leituras optativas (detesto leituras obrigatórias!). Cheguei até lá pela evidência que ele ganhou graças ao furo de reportagem chamado Farra das Passagens, mais um mar de lama que vem do Congresso Nacional. Só que o texto só trata indiretamente desse episódio.


A gestão da violência
Márcia Denser*


Examinando as estreitas conexões entre política, técnica e violência, presentes na atualidade, retornamos a um texto de Maria Célia Paoli[1] que esclarece como a tensão entre esses três elementos remete irreversivelmente ao campo da gestão das relações sociais e políticas, ou seja, aos “mundos gerenciados” pelos poderes constituídos cujo objetivo é abolir toda e qualquer dimensão que dê espaço à manifestação popular.

A questão social hoje retrata o mundo dos excluídos como forma de vida que ocorre na exceção: a existência de um contexto político marcado pela exceção de fato na ordem jurídica implica na exposição de pessoas a uma violência que a lei não pode conhecer, o que requer tecnologias que tornam admissível a negação dos direitos e a invisibilidade em que são jogados os deserdados do sistema.

Estudos apontam que, para além de uma situação de pobreza e desemprego, a destruição sistemática dos meios de sobrevivência e trabalho, daí a condição descartável dos próprios trabalhadores, se integra – e esse é o ponto – à normalidade da vida na cidade. Tal condição não é passageira, mas se constitui um destino certo: antes até de tentarem entrar no mercado de trabalho, muitos migrantes vêm para a cidade já como moradores de rua. Essa população marginalizada, confinada numa espécie de campo de concentração, isolada e sem perspectivas, vive num estado de “guerra civil não declarada” tecendo o contexto de violência crônica ao qual não escapa uma dimensão de “justiça social direta” de quem sempre foi vítima de todas as violências e repressões.

Mas a violência inscreve-se, desde sempre, na desigualdade distributiva do país, de modo que a “distribuição do bolo é feita à bala”, daí que a “regulação pela violência” divide com “a gestão monitorada dos indivíduos” a manutenção da ordem. Por outro lado, a violência também se deve à falência das instituições legais do país, algo comprovado pelas chacinas. Gestão técnica do social, violência, territórios de refugiados urbanos – eis o mundo já interpretado sob o critério do medo e da aspiração pela segurança. No entanto, segundo Rancière, “a insegurança não é um conjunto de fatos, é um modo de gestão da vida coletiva (grifo meu), que permite a associação do Estado gestor com o Estado policial: um retorno ao arcaico, produzido pelo abandono estatal das regulações sociais e pela completa liberdade do capital”.

Aliás, é Chico de Oliveira[2] quem desfaz, entre outras, a tolice neoliberal de que estaríamos vivendo num contexto de “Estado mínimo”: na verdade a intervenção do Estado jamais encolheu, mas sim sua direção e sentido ao privilegiar o capital em nome de modelos econômicos incompreensíveis diante não só das condições de vida da população, como da possibilidade dum outro caminho de desenvolvimento. Na base da tecnocratização do governo, há o fato de a política ter sido engolida pela economia, e o efeito da anulação da política torna o país ingovernável.

Para Oliveira, a hegemonia – no sentido gramsciano de “direção moral da sociedade” – é quase impossível, em razão da enorme desigualdade: “Um intransponível fosso entre as classes torna uma quimera qualquer experiência comum no espaço público, que aliás se privatiza de forma acelerada. Escolas de elite, hospitais de grife, mais de duzentos helipontos em São Paulo (enquanto Nova York tem apenas quatro), condomínios-gueto, polícias privadas cujos efetivos superam a soma das polícias públicas e das Forças Armadas.”
Sendo simbólica, a hegemonia não pode se configurar sem um mínimo de igualdade. O fosso da desigualdade na sociedade brasileira sendo abissal já não pode ser transposto apenas simbolicamente. A esse estado de coisas, os dominados respondem com a violência privada: alcança-se pelo crime aquilo que a impossibilidade da igualdade já negou.


[1] In A Era da Indeterminação, org. Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, pgs 222. São Paulo,Boitempo, 2007.[2] Idem acima, pgs 282.

*A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango Fantasma (1977), O Animal dos Motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora (1986), Toda Prosa (2002) e Caim (2006). Participou de várias antologias importantes no Brasil e no exterior. Organizou três delas - uma das quais, Contos eróticos femininos, editada na Alemanha. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura brasileira contemporânea, jornalista e publicitária.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Textando

Minha forma de pensar tem mudado com uma velocidade altíssima. Talvez seja isso que me iniba de escrever com mais frequência por aqui. Quando decido abrir a caixa de texto, pronto, aquele assunto já não faz mais a menor diferença. Se alguém se der ao trabalho de percorrer a minha produção de textos ao longo desses quase três (eu acho) anos de blog, verá que não há um acompanhamento dos assuntos tratados. Como eu escrevi em um antigo post, meus textos assemelham-se mais a espasmos (desde que aprendi essa palavra, em uma aula de biologia, é uma das minhas preferidas).

No entanto, escrever é necessário. Não importa que não haja assunto, o objetivo de escrever (para mim) é simplesmente escrever. Funciona como a comporta de uma hidrelétrica que precisa abrir-se para que a água passe, e assim, gerar corrente - me desculpem os sabidos nessa área se a comparação não faz sentido. Acho ridículo quando vejo alguém dividir os textos em "úteis" e "inúteis", ou desqualificá-los pelo simples fato de não terem "interesse público" - opa, eis uma opinião que pode não ter vida longa.

Oras, se o tal texto não tem utilidade ou não interessa para quem o lê, ainda assim já cumpriu o seu propósito primordial: expressou o que estava dentro de um ser humano, tornando-o "des-abafado" (detalhe: ainda não estou muito a par dessas novas regrinhas da gramática, então vou de português arcaico mesmo)

Sinto que esse texto já cumpriu o seu papel. Termino agora de uma forma abrupta mesmo.

Alan Araguaia

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Cazuza 50 anos: Suporte, baby. Baby, suporte.

50 anos de aniversário de Cazuza. Penso... quem seria o “senhor” Cazuza? Algum senhor moleque, ou senhor(a) louca, ou entregue às gravadoras (senhor Caetano), ocupando cargo político (senhor Gil), compondo mediocridades empresariais (senhor Frejat), vociferando na MTV (senhor Lobão)? É difícil dizer. “Cazuza gostava de aparecer”: frase de sua própria mãe. Minha opinião é que Cazuza era mais do tipo que gosta do “morde-assopra”. Pois bem. Suporte, baby.

Que diria Cazuza de um tempo em que a juventude se alarga para um sem fim, a infância encurta, a fase adulta talvez apareça, de vez em quando, nas entrelinhas da vida (quando começam a chegar as contas, por exemplo) e o grande perigo se torna chegar a velhice? Claro que, com as propagandas hi-tech que temos hoje, não dá pra imaginar o mundo de outra maneira (será?). Até Hollywood faz filme politizado... Realmente os tempos mudaram.

Muitos estudiosos afirmam que a “idéia de Brasil” ou de “identidade nacional” conformou-se (aliás, em toda nossa realidade latinoamericana), pelas indústrias culturais. Isso quer dizer que, primeiramente o rádio, e depois a televisão tiveram papel fundamental na construção e propagação dessa idéia de “cultura brasileira”. Nossa idéia de pertencimento foi forjada de maneira diferente da dos americanos (pelo cinema) ou dos alemães e franceses (literatura).

Portanto, justiça seja feita em sua memória: no Brasil, Cazuza ajudou a conformar, com seu comportamento (se não o dos próprios jovens de hoje, pelo menos o de seus pais), uma forma de hedonismo e de materialismo que também estava presente em Madonna (“You’re a superstar, Yes that what you are...”) e Michael Jackson (“I wanna rock with you, all nitgh...”), que “disputavam”, naqueles anos 80/90, com as músicas de Cazuza.

Até então, existiam lindas imagens do Arpoador e aquela coisa “alternativa” que era ir pra Bahia. Não existem mais, foram substituídas pela violência-espetáculo (cuja imagem-símbolo é a favela) que é passada cotidianamente na TV e noticiada na Internet. A Bahia inteira ficou resumida ao pelourinho, principalmente depois de “Ó paí, Ó”. Não estou dizendo que Cazuza era um babaca. Estou dizendo que ouvir Cazuza hoje é diferente. É um tempo bem vagabundo.

Passou a impregnar nesses nossos tempos a idéia dos “estilos de vida”, conhecidos também pela idéia de “corrosão do caráter”, em que o que importa é o imediatismo, a flexibilidade e o relativismo em relação aos valores. Desculpem, não quero parecer conservador (nem gosto tanto assim do Ariano Suassuna, antes de você me perguntar).

Só que esse aposto é necessário porque hoje é difícil fazer uma crítica direta a segmentos da população (principalmente de classe média) que se diz jovem (e descolado) não pode receber nunca um “não” como resposta (para simplificar). Nos Estados Unidos esta geração está sendo chamada de “Geração do Milênio”, que Cazuza não viveu para ver crescer.

Não basta apenas fazer as coisas que Gregório de Matos ou Cazuza fizeram. Tudo isso é muito divertido. Legal mesmo. Acredito que existe resistência na recusa. Aliás, ela começa exatamente aí. Só que vem a pergunta, rapeize: e depois?

Também não vou te dar lição de moral, já que estás lendo este texto até aqui (coisa que vai ficando mais rara hoje em dia... deves saber). Não se pode delimitar o comportamento, talvez nunca se pudesse.

Lembrar nostalgicamente de Cazuza como um herói, também não faz muito sentido. Mas Cazuza sabia que a resistência começa na vontade de ser. E que, sabendo portá-la, toda ferramenta é uma arma. Isso vale tanto para a música quanto para a vontade. E o melhor, em Cazuza, está na conjugação das duas.

“Se até o ano 2000, o mundo não acabar... e eu estiver vivo, na rua ou num bar...”
Não está. Infelizmente. A música acaba por ser cantada por Paulinho Moska. Não é que ele seja ruim, pelo contrário, é um dos melhores dessa geração. Para repetir um clichê – amor e dor, allá Cazuza – digo que, nessa música, o criador se parece mais com a criatura.

Cássia Eller queria ser Cazuza. Cazuza queria ser Ângela Rôro. Assim sucessivamente... caminhando. E hoje caminhamos na presenteidade do futuro.
Tivemos de Cazuza o que esperávamos, o que ele tinha de pior, de melhor, e mais um pouco. O blues pode caminhar conosco, entre o poder e a miséria, porque ele é assim. Mas, pro dia nascer feliz, é preciso vontade e alegria, para existir nessa multidão. Que é nosso inferno e céu.... de cada dia.

Fabrício Mattos
Jornalista e Mestrando em Políticas Públicas e Sociedade da Universidade Estadual do Ceará.